sexta-feira, fevereiro 17, 2006

1 - (atualizado em 22/02)

Fiquei a manhã inteira catando conchinhas na praia. Isso não é fácil por aqui. A areia é quase toda artificial, muita máquina que remexe ali. Concha inteira é sempre raro. Na verdade a areia aparenta mesmo um monte de conchinhas quebradas em pedaços tão minúsculos que se tornam grãos de areia.

Achei uma concha muito bonita, meio esverdeada. A moça que tava me vendo perguntou o que eu fazia e eu disse que catava conchinhas e ela disse ''bobagem''. Fiquei com raiva dela e pensei em mandar ela à merda e dizer que ela não sabia de nada, que não fazia idéia de como pode ser prazeroso catar conchinhas pela manhã. Mas não disse nada e molhei um pouco minha concha esverdeada de forma que quando a passei na camiseta de malha que eu vestia ela ficou extremamente brilhosa e muito mais azulada que esverdeada.


Então eu coloquei minha concha num saquinho que fiz especialmente para colocar as conchinhas que cato pela manhã. É um saquinho ordinário, mas que só uso pra isso. Sempre que vou catar minhas conchinhas minha vó pergunta " Pegou seu saquinho de catar conchinhas?", aí eu respondo que sim e penso que minha vó está velha e que deve ser terrível ser tão velha e estar perto da morte por ser tão velha. E penso que se eu chegar a ficar tão velho quanto a minha vó eu não vou conseguir dormir porque vou ter medo de morrer enquanto durmo, e penso que deve ser uma tortura não saber se vamos ou não acordar, essas coisas. E isso tudo eu sempre penso quando minha vó pergunta sobre meu saquinho, mas hoje eu pensei também que talvez os velhos queiram morrer mesmo, já que tão por aqui há bastante tempo e pensei também que depois de tanto tempo a vida deve ser um troço meio chato, meio previsível. Mas isso eu só pensei hoje de forma que não tenho como chegar a uma conclusão se concordo ou não comigo.

Depois da mulher ter dito que era bobagem catar conchinhas não achei nenhuma concha que valesse o esforço de se abaixar. Algumas, as mais vistosas, eu cutucava com o dedo do pé, mais precisamente com o dedão, que é, sem dúvida, o dedo do nosso pé que mais pode distinguir as coisas, no caso, as conchas. Sou capaz de saber se a concha está quebrada só de cutucá-la com meu dedão. Um dia, por pura curiosidade, catei conchinhas de olhos fechados. Eu ia muito devagar e quando pisava em algo mais consistente que areia eu avaliava o objeto com o meu dedão. Nesse dia eu catei três boas conchas, sempre de olhos fechados. Eu pegava a concha com o dedo do pé e trazia até minhas mãos para conferir que não havia mesmo nenhuma rachadura na concha. Nunca catei nenhuma conchinha quebrada, ou mesmo rachada. Nunca.

Eu tinha apenas uma concha no meu saquinho e não estava satisfeito, pensei comigo mesmo que se achasse mais uma concha eu voltaria pra casa e faria alguma coisa pra ajudar a minha vó que era velhinha e frágil. Fiz todo caminho de volta procurando a conchinha que faria eu ajudar minha avó, mas não achei nada. Quando eu tava saindo da areia eu vi a mulher que tinha me feito mal dizendo que catar conchinhas era bobagem. Fiquei olhando ela umas duas horas. Duas horas de imenso prazer por sinal. Ela estava sozinha na praia, mas se divertia imensamente. Ela dava um jeito de falar com todos que passavam, vendedores, banhistas, semi-atletas, etc. E depois que ela falava com eles ela sempre dava uma gargalhada e fazia não com a cabeça. Depois ela punha os óculos de sol e voltava pra revista que tava lendo.

(Na verdade ela era muito bonita e eu fiquei de pau duro quase todo tempo. Ela usava biquíni rosa e tinha o cabelo na altura dos ombros mais ou menos. Tinha uns seios enormes e quando ela fazia não com a cabeça eles chacoalhavam um pouco. Só um pouco.)

Quando eu cheguei em casa minha vó falou que eu tinha demorado muito e perguntou se tinha tido sorte com minhas conchinhas e eu mostrei pra ela minha única concha azulada e ela disse que a vida era assim mesmo. Eu fui pro meu quarto e marquei a data da concha, depois anotei tudo num papelzinho e colei com crepe.

Minha vó bateu no quarto e disse que a gente ia almoçar no quilo de trinta reais e que ia me esperar só cinco minutos porque ela tava com muita fome. Eu adorava ir ao quilo de trinta reais porque lá tinha ostras e eu sempre pegava uma pra ficar com a concha. Teve uma vez que a gente foi lá e eu só peguei ostras e minha vó falou que se eu fizesse mais uma vez isso ela não ia nunca mais me levar no quilo de trinta reais porque a concha era mais pesada que a ostra e que, portanto, eu tava na verdade, só desperdiçando dinheiro e que isso não tava certo porque ela ganhava pouco e não gostava de extravagâncias. Eu prometi pra ela que nunca mais faria isso e ela ficou contente e disse que daquele dia em diante eu só poderia comer uma ostra por refeição, o que eu sempre fazia, mesmo quando não tava com vontade de comer ostra. Foi nesse dia que eu percebi que minha vó era a pessoa que mais me conhecia no mundo inteiro e eu lembro que quando eu pensei ‘no mundo inteiro’ fiquei muito chocado porque sabia que minha vó morreria logo e que jamais haveria alguém que me conhecesse tão bem quanto ela. Esse dia na verdade foi muito triste porque pensei que era muito difícil minha vó viver mais que dez anos.

Depois do restaurante de quilo de trinta reais minha vó falou que tinha que fazer umas coisas e que preferiria fazer sozinha e que era melhor eu voltar pra casa pra deixar ela sossegada. Enquanto eu voltava pra casa eu vi a mulher que tinha dito bobagem pra mim e vi que ela trabalhava numa loja de perfumes e que não sorria tanto como na praia. Eu parei um pouco e fiquei olhando ela vender perfumes pra um casal que parecia ser um casal gay. Eram dois homens que, de vez em quando se olhavam de uma maneira muito cúmplice, de forma que cheguei a conclusão que só podiam ser amantes para trocar o tipo de olhar que os dois trocavam. Vi que ela fez uma boa venda pro casal e que, mesmo assim, não parecia muito animada. Pensei em ir até a loja, mas desisti.

Quando eu cheguei em casa eu resolvi ver t.v e acabei dormindo e acordei só as seis da tarde e vi que minha vó ainda não tinha chego e fiquei preocupado pensando que talvez a velhice a tivesse, finalmente, matado. Mas ela chegou as sete toda animada e dizendo que tinha comprado coisas muito baratas e que queria que eu experimentasse a camiseta que ela tinha comprado pra mim o que fiz e vi que a camiseta era boa e que apenas quinze reais por aquela camiseta era realmente uma pechincha. Depois minha vó me beijou e disse que eu era um bom neto e que como tinha economizado nas compras estava me dando cinqüenta reais para eu gastar com minha cervejinha. Eu agradeci e disse que ela era a pessoa que mais me entendia no mundo inteiro e ela falou que bobagem pra mim e foi fazer sanduíches para que a gente jantasse.

Durante toda a janta minha vó estava eufórica e fiquei pensando se isso não era um tipo de despedida da vida e fiquei, de fato, com medo que ela morresse aquela noite e perguntei pra ela se ela tinha medo de morrer e ela disse que não e que a vida dela tinha sido boa e que se morresse não teria do que se arrepender. Ela disse que quem tinha que ter medo de morrer era eu porque a minha vida era estranha e que porque se ninguém ligava pro que eu escrevia talvez fosse pelo fato de eu não escrever tão bem assim. Depois de dizer isso ela pediu desculpas e disse que a maioria das pessoas vivas são burras e que talvez fosse por isso que ninguém entendesse o que eu escrevia. Ela viu que eu tinha ficado um pouco ofendido e me deu mais dez reais e pediu desculpas de novo e falou que a minha vida já tinha valido a pena porque “os grandes” já tinham gravado aquela música que eu tinha feito com meu ex-amigo a dez anos atrás, e que bem ou mal, eu sempre ganhava um dinheirinho por causa daquela canção. Ela pediu desculpas de novo e disse que ia dormir porque aquele dia tinha sido duro e que estava cansada e que eu podia sair tranqüilo porque aquela noite ela não iria morrer.