sábado, dezembro 03, 2005

PARA MINHA CAÇULA, QUE NASCE HOJE - (por Fausto Fawcett)

Não sei com que direito
a privamos do vazio
e obrigamos a existir:
alguém com dois braços, um nome,
certidão de nascimento,
RG, consciência e CPF.

Para despistar a solidão,
pela ilusão de imortalidade
no continuísmo do sangue,
por vaidade,
para cumprir algum protocolo
embutido em cromosomos,
para dar uma caçula às irmãs,
uma neta às avós,
um assunto aos amigos,
um contribuinte ao Estado,
um consumidor ao mercado,
por algo como amor,
ou por, sei lá,
nenhuma razão em especial
— a arrancamos do nada,
brincamos de fiat lux
e fabricamos uma vida.
Mais uma para um mundo
que já tem gente demais.

Queria trazê-la para um lugar melhor,
um lugar onde não nos dessem
a cada dia um motivo
para ter vergonha de ser gente.
Se tivessem lhe dado a escolha,
quem sabe não teria preferido
o vácuo à vida?

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Tudo o que sei é
que agora está aqui,
tão invisível quanto presente, distante e tão próxima,
uma presença escondida atrás de um umbigo,
pulando e chutando
a poucas horas da luz.
Estamos a postos:
as fraldas ganhadas no chá de bebê
e o berço com as prestações quitadas.

A mulher grande,
equipada com extensas reservas de carinho
e leite nos peitos para café, almoço e jantar,
é tua mãe,
mulher grande e forte,
que tem muito a lhe ensinar.
A menina morena, longa cabeleira,
jeito sério e arredio, como a lua,
sorriso distribuído em fases, como a lua,
é sua irmã mais velha.
A outra, baixinha com olhos de mangá,
olhos imensos de boitatá,
riso claro e intenso de sol,
é a outra irmã,
ex-caçula,
por tua causa promovida a irmã do meio.
E este,
queria se mostrar mais confiante,
menos atrapalhado,
e lhe ensinar alguma coisa
ou, pelo menos, dividir com você
o mesmo espanto diante da vida.

Daqui a pouco
vai dizer adeus a calor e tranqüilidade
e levar um tapa na bunda
para sacar que o negócio aqui não é moleza.
Vai conhecer o frio e a dor e
antes de falar ou andar ou sonhar
vai aprender a chorar.
Chorar é lição que não se esquece
e sei que vai voltar a ela muitas vezes,
e que eu não poderei protegê-la.
Só o que posso fazer
é ensiná-la
a sorrir.