Auto Retrato
Ela mora sozinha, eu acho. Eu estou a observando já faz um tempão, mas ainda não entendi. Dias atrás tinha um cara na casa dela. E eles conversavam bastante e pareciam falar de coisas terríveis. Não entendi quem é esse cara na vida dela.
Agora ela tá ali. Num lugar que eu vejo muito bem daqui, que é a mesa que ela senta. Ela põe uma toalha, põe cheia de cuidado. Ela nem sorri nem canta enquanto faz isso. Ela põe a toalha assim, passando a mão pra deixar a toalha bem esticadinha. Mas o que me impressiona é o rosto dela. Tá vazio. Não pra entender o que ela pensa enquanto estica sua toalha.
Ela arruma sua mesa devagar. Vai e volta. Traz uma coisa de cada vez. Eu não entendo porque. Cada vez que ela entra na minha vista tem uma coisa nova na mesa. Agora tem três coisas que vejo, mas tem coisas que tão na mesa e que não consigo ver daqui. Queria tanto ver essas coisas que não consigo ver daqui. Tanto.
Ultimamente tenho pensado em como descobrir o nome dela. Isso não é simples porque só a vejo da minha janela e mesmo assim, o que vejo mesmo, é o reflexo da janela dela num prédio de escritórios que fica em frente a minha casa. Como é que faço, pergunto por porteiro? Tenho que descobrir o nome dela. Tenho.
A mesa tá arrumada. Ela alinhou três objetos. Alinhou duas, três vezes, como se houvesse um sistema para alinhar os objetos, como se ela tivesse TOC ou algo do tipo. Na frente dos objetos alinhados há duas coisas que não consigo distinguir daqui. Maldito reflexo. Ela sai de novo.
Agora ela volta com uma chicarazinha. Uma chicarazinha que daqui parece oca. Ele prepara o que deduzo ser um café com leite. Ela prepara com uma calma louca, uma calma que me dá agonia. Tem um bulizinho, um bulizinho desses antigos, de antiquário talvez, ou de herança, não sei. É um belo bulizinho, mas parece de brinquedo.
(Reparando bem todos os objetos alinhados e mesmo a chicarazinha oca parecem de brinquedo. A toalha também. É verdinha cor de criança. Meu Deus, meu Deus, será que ela é uma criança? Será que ela é uma criança que mora sozinha? Mas isso não faz nenhum sentido . Mesmo que ela fosse muito nova, tipo 16, não seria uma criança, seria uma adolescente. Então é isso: ela é uma adolescente que mora sozinha.)
Ela tá tomando o seu café com leite e fica com o olhar meio vago. Que vontade de saber o que ela tá pensando agora nesse instante. Ela inclina seu corpo pra direita, apoia a cabeça no antebraço e toma o café com leite. Devagar, devagar. Parece que ela tá sussurrando alguma coisa, a boca se mexe. Será que ela tá falando comigo? Será? Pelo reflexo parece que ela me olha, mas isso é impossível. Impossível. Meu Deus, que agonia, que agonia.
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